segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

society, have mercy on me...

I hope you're not angry if I disagree...

Certa vez acordei com um monstro me encarando. A princípio, fiquei como se espera que qualquer pessoa fique: aterrorizado. Eu mantinha sempre meus dois olhos abertos, vigiando, mas sem jamais olhar diretamente em seus olhos vermelhos e opacos. E ele lá permanecia, como uma gárgula sinistra, parado, impassível, silencioso... apenas o som pesado de sua respiração me fazia gelar. Era a bestial quimera, que se esconde sob a alcunha de sociedade.
Eu tentei me esconder. Ergui muros de concreto; portas de madeira e cortinas de linho: tudo sob a escuridão de uma lâmpada apagada. Mas ela veio atrás de mim pelas frestas da janela, pelas rachaduras da parede, pelo vão embaixo da porta... Ela me atingiu em cheio e me envolveu em sua mortalha negra e silenciosa. Contorci-me tentando me desvencilhar, mas eu era apenas uma criança, nada pude fazer senão ceder. Tornei-me um escravo, um reles escravo: um escravo que carregava consigo a eterna promessa de um dia ser livre.
Eu cresci. Agora eu tinha o poder, o poder de me erguer, de lutar, de insistir. Tinha o poder da rebeldia, da força de vontade. Eu tinha o poder, mas não tinha a coragem. Tentei ir à luta mas, quando ganhei minha primeira ferida, me escondi atrás de uma pedra; fiquei observando as nuvens passarem e meu sangue parar de escorrer. Mas elas não passavam. O sangramento não estancava. Baixei meus olhos. Foi quando eu vi a fila dos desvalidos, dos fracos e infelizes; e eles caminhavam acorrentados a uma pedra gigantesca. Não se ouvia sequer um ruído, nenhum suspiro, nem mesmo seus passos trôpegos sobre o mármore do altar de sacrifício produzia som algum. Ouvi meus pensamentos. Vi o brilho das correntes. Vi a quimera voando em círculos sobre minha carcaça. Vi o rastro escarlate se estendendo pelo chão. Eu tinha escolhas. Eu tive UMA escolha...
Olhei para o outro lado e não vi ninguém. Ninguém com o rosto nu, ninguém de peito aberto, ninguém armado, rodopiando no campo de batalha. Estavam todos quase mortos, desacordados, espalhados pelo chão. Eram as sementes do fracasso eminente dos que ainda viriam. Fechei meus olhos para tudo aquilo. Levantei e voltei para o campo de batalha. Eu cuspi meus pulmões em um grito de escárnio. O monstro pousou a minha frente e me encarou enfurecido; e também cada soldado do seu exército de mortos-vivos o fez, cada alma contaminada pela sua mordida imunda. Fique paralisado pelo medo, minha voz partiu definitivamente, deixando apenas o silêncio vão escorrendo pela minha boca. Caí de joelhos e implorei por sua clemência. Eu não podia lutar e não podia fugir, eu apenas podia oferecer minha alma em troca da minha vida. Senti então seus dentes fétidos perfurarem minha pele; e agora eu era apenas outro morto-vivo, tentando achar abrigo sob as asas da quimera.

Fizeram-me acreditar que homem algum jamais poderá ser livre.