sábado, 11 de dezembro de 2010

pela janela do trem

      Esse texto é uma das coisas das quais eu mais tenho orgulho de ter produzido. Foi publicado originalmente em 1º de junho de 2009 no "Pensa pra quê?", mas eu achei válido publicá-lo mais uma vez.

Onze horas da manhã. O dia ainda está entre a preguiça da manhã e a velocidade do meio-dia. Pelo menos para alguns. Eu embarco no segundo vagão do trem que ruma para São Paulo, para a velha e movimentada Estação da Luz. Sento-me à janela enquanto uma voz fala a todos que o trem está de partida. Muito devagar o trambolho começa a se mover ― tromp-tromp-tromp ― e num minuto estamos a toda velocidade.
Meus olhos colam no que passa rasgando pelo vidro. O que está mais afastado permanece mais tempo na janela, o que está mais próximo apenas passa pela minha visão como uma mancha difusa. Em uma fração de segundo fica para trás, como tudo mais nessa vida.
Eu vejo a Serra imponente se erguendo sobre a cidade, vejo a sombra da fumaça das indústrias, e vejo também as torres de eletricidade despontando sobre o seu lombo verdejante. Tudo parece tão erroneamente perfeito à distância. Toda sujeira converge em um ponto de inacreditável limpeza. A desordem se torna ordem quando ela se torna parte do comum. A Serra bloqueando minha vista do horizonte repousa em singela paz.
A cada metro que avançamos a paisagem muda. É como uma sequência interminável de fotografias coloridas. Uma colcha feita com os retalhos da realidade que passam pela janela do trem. De maneira extraordinária, essas partes não se encaixam devidamente, muito pelo contrário, elas parecem peças erradas de um quebra-cabeça impossível de ser montado, ao mesmo tempo em que formam uma imagem muito nítida de um mundo que de fato existe, e com todo o direito de existir.
E as cenas vão seguindo: uma menina sentada num muro observa os carros que passam pela estrada; mais adiante, três garotos jogam bola num campinho judiado. O sol quente brilha forte sobre um velho senhor, que se protege sob uma chapa de madeira empenada, enquanto, sentado à beira uma ponte, pousa seus olhos austeros sobre o lento e malcheiroso córrego sobre o qual pendem seus pés. Tudo flui com a costumeira calma.
Um rapaz empina uma pipa sobre a laje de uma casa. Os carros se enfileiram feito formigas, seguindo pela estrada paralela a ferrovia. Nenhum deles tem um destino, não para quem os observa de dentro do trem. Ali está a fábrica de papel com seus depósitos de eucalipto e suas chaminés a expelir constantemente a pálida fumaça branca. E as pichações dos muros trazem em suas costas histórias que se encontram a anos-luz de mim. Pelo vidro eu vejo árvores florindo, crianças brincando, alegrias e tristezas disputando espaço no universo; vejo o mundo girando com rapidez, mas nunca com pressa. 
Depois de um tempo o trem finalmente chega ao seu destino. Eu desembarco. Entretanto, logo atrás dele, vem outra composição, trazendo mais pessoas e passando novamente pelos mesmos lugares. Amanhã, certamente embarcarei no mesmo vagão, no mesmo horário e verei tudo novamente. Mesmo que o velho senhor não esteja balançando seus pés sobre o riacho, e mesmo que ninguém esteja jogando bola no campinho de terra, a pintura continuará a mesma. É sempre preciso que algo passe para que outra coisa comece ou recomece. Afinal, como disse José de Alencar em Iracema: tudo passa sobre a terra.

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