sexta-feira, 15 de outubro de 2010

insomnia

      Alguém dormindo. Alguém dormindo, mas não sou eu. Uma, duas, talvez três da manhã. Meus olhos permanecem abertos, descobertos, vulneráveis aos meus inimigos mais improváveis: o invisível. Estou cansado, a carne pesa, a mente trambeca, os sonhos vem e vão amparados pela insensatez da consciência. São estéreis, frios, e me enojam, porque são as únicas coisas capazes de me traduzir. Eu observo seus olhos me observando; e eles giram, eles se distorcem, eles se dispersam em nuvens de insetos, e eles brilham feito a lâmpada de um farol distante. Alguém dormindo esta noite. Alguém dormindo, mas não sou eu.
         É a primeira, a segunda, talvez a terceira noite. Ninguém se importa, e às vezes eu duvido que eu me importe. Meus olhos pesam; pesam, mas não fecham. E eu me contorço, me reviro, sento-me e levanto; deito outra vez. Ah! Maldito travesseiro de concreto! Lençóis de navalha, cobertor de urtiga...! Não me deixam esquecer nada. Não me deixam esquecer o que eu quero esquecer. O que eu preciso esquecer. Meu cérebro se enche de retalhos de pensamento, que crescem e se espalham feito cogumelos: em qualquer recanto úmido ou qualquer alcova mal iluminada dentro da minha cabeça.
         Revejo minutos e mais minutos do dia que se foi. Passos avançados, passos recuados, passos não dados... E agora tudo é passado. Meu braço formiga com a saudade do que não aconteceu, e meu peito se conforma com o que aconteceu. Olho para o relógio, menos de três quartos de hora se foram, mas eu ainda estou aqui. Ainda estou esperto, desperto, incerto sobre o tempo que se perdeu, sobre o tempo que perdi. Tento contabilizar os troféus, minhas medalhas empoeiradas que me enchem de orgulho e tristeza. São tão poucas e sem brilho...
         A realidade se torna intermitente. Cambaleio entre os sonhos e a luz da lua brilhando pela fresta da janela. Me pego preso entre a ilusão de estar vivo e o desejo de não estar; não naquele instante. E de repente a noite é tão interminavelmente transitória; eu me sinto infinito em um universo microcentesimal... Minha mente se silencia enquanto eu deslizo vagarosamente em direção à inconsciência.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

memórias de uma gota de orvalho

Madrugada fria. Pelo menos o fim dela, que é a partir de onde eu consigo me lembrar. Além dessas folhas verdes que se erguem ao meu redor, vê-se apenas a corpulência leitosa da neblina a dissolver as luzes brancas, amarelas e laranjas dos faróis dos automóveis e das luzes da cidade a despertar. O silêncio devastador vai lentamente dando lugar ao barulho autômato e metálico do dia. As luzes começam a pipocar pelo ar, formando letreiros luminosos a escrever breves poesias ininteligíveis, conforme as casas vão sendo lentamente abandonadas por Morfeu. Estremeço com a brisa que passa por mim. Madrugada tão fria...
         Encaro o horizonte distante, escuro, e meus ouvidos frios suspiram ao ouvir o sussurro melancólico da brisa atingindo as folhas. Sobre minha cabeça um fruto, o qual não consigo identificar, pende taciturno, como que me observando, contando silenciosamente os segundos até que despenque sobre meu corpo cansado. Oh, o cansaço! Que demônio mais sedutor! Amigo do tempo, inimigo do resto. Vem me abraçar sorrateiramente, sorrindo, dizendo palavras doces, desenhando com seus tocos de carvão as pinturas mais belas em frente aos meus olhos. E meu corpo desliza lânguido pela folha onde repousa. Me sinto pesado. Oh, como pesa! Toda a gravidade de uma madrugada vem dançar sobre mim.
Ouço minha própria voz me desejando bons sonhos. Pela primeira vez vejo o chão e percebo como ele está longe de mim. Me vejo caindo. Caindo lentamente, quebrando o ar ao meu redor feito uma navalha abrindo caminho por uma tela de linho. Queda interminável. Tudo ao meu redor se converte em um único borrão macilento, lívido como a lua, fugaz como todo o resto. Penso na colisão iminente. Sinto-a. E até sonho com ela. Imagino como eu me sentiria, o que viria depois. O pânico se torna curiosidade. Curiosidade sem coragem; olho para baixo e estremeço com a vertigem. Recuo um passo, dois, e me pego novamente confortável na mesma posição onde sempre estive.
         Ergo meus olhos e vejo o céu se tornando cada vez mais e mais azul, mais e mais anil, mais e mais ameaçador com sua pureza insípida e impassível. A cidade desperta de seu sono pesado. Aqui e ali os ruídos se multiplicam e se intensificam. Morre o silêncio, morre uma parte do tempo e com ela vai meu conhecimento de tudo que existe. Minha sabedoria prova-se falha e perecível. Um mundo de novidades aparece diante de meus olhos frios, mas eles já estão cansados de enxergar; eu estou cansado de pensar o que eles enxergam. Tudo a minha volta não passa de novidades desgastadas, rotas, truncadas. Tudo é tão miseravelmente patético e belo.
Madrugada tão fria aquela... aquela que mora dentro de minha lembrança. Aquela que se fora tão inexplicavelmente quanto chegara. Agora o sol se ergue atrás da serra, trazendo consigo minha sentença de morte. Eu me deito serenamente sob sua luz.